Exposição
Antônio Poteiro 100 Anos
Abertura | Opening
Quinta-Feira
30 de outubro de 2025
20:05 hs
Thursday | October 30th, 2025
8:05 PM
Período | Duration
Até 20 de janeiro
De segundas a sextas-feiras – 9 às 18 h
Sábados – Das 10 às 13 h
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Until January 20th, 2026
Mondays to Fridays – From 9 am to 6 pm
Saturday – from 10 am to 1 pm
Local | Location
Curitiba, 1862, Lourdes
Belo Horizonte / MG
30.170-127
Estacionamento privativo
(31) 9 9889-1515
(31) 9 9889-5445
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Sério e sábio
1,13 obra para cada ano de vida do artista. Há bom tempo percebo a admiração e o carinho dos irmãos Flynn, não só como marchands mas também como pessoas, em suas sensibilidade individuais, pela arte de Antônio Poteiro, cujo centenário de nascimento esta exposição comemora. Com o mesmo afeto foram procurando e reunindo pinturas e cerâmicas, guardando-as para o evento de hoje. Creio que acervo com o mesmo porte e brilho só deve existir em Goiânia, nas coleções da família e do Instituto Antônio Poteiro. Cabe realçar ainda que a exposição dá a devida importância à produção em cerâmica, àqueles grandes potes de barro que eram sua profissão original e lhe deram seu nome artístico. Da função utilitária, os potes se alçaram a objetos estéticos graças à profusa ornamentação e ao peso, que os privou do uso original, e se desdobraram em esculturas. Só servem hoje para serem contemplados.
Para esse tipo de artista que de repente emerge dos recantos onde se escondia, não fez estudos específicos, não aprendeu a desenhar nem a pintar – para depois ter reconhecido o direito de violar os cânones correntes –, e não veio caminhando ao longo de um processo balizado pela Alta Cultura, usam-se, como sabemos, os rótulos primitivo e ingênuo, este traduzindo o francês naïf, usado na Europa. Nenhum dos dois me agrada, porque podem conotar ideias de primitividade, rudimentarismo, precariedade técnica ou intelectual. Mas basta ver a esperteza da pintura e da pessoa de Poteiro – nos dois sentidos da palavra: expertise – para darmo-nos conta de sua suficiência e eficácia expressivas Nada menos ingênuo que ele. O mais correto é chamá-lo de espontâneo e/ou popular, títulos que entre os civilizados não diminuem ninguém. Primitivo Poteiro não é.
Como pintor, Poteiro foi descoberto, podemos até dizer viabilizado, por Siron Franco no começo dos anos 1970, década da mais intensa atividade na arte brasileira. Observando a riqueza formal da ornamentação dos potes, a fabulação rica e movimentada, a fervente invenção, Siron teve a ideia de lhe colocar nas mãos tintas, telas e pinceis, e fosse o que Deus quisesse. Deus quis. A força do pintor emergente lhe valeu sucesso imediato de público e de crítica, e em 1978 ele estava expondo na Galeria Bonino, no Rio, aval certo de reconhecimento e qualidade. Daí em diante expôs no Brasil e no exterior, em todas as coletivas internacionais da nossa arte contemporânea, e em numerosas individuais. Encontrei-o uma vez no Japão acompanhando uma destas, arranjando-se perfeitamente sem saber uma palavra em qualquer língua estrangeira, e passando muito bem, obrigado. Com maior desenvoltura (se possível) enfrentou e resolveu os desafios da criação. Não posso dizer que convivi com Poteiro, vimo-nos algumas vezes aqui ou em Goiânia. Mas era um ser tão cristalino que entendi seus meandros. Português da Ilha da Madeira, uma vez emigrado para o Brasil, antes de se mudar para o planalto central, viveu vários anos no interior de Minas Gerais, essa magnífica
escola para a ironia e o ceticismo, senão a tristeza. Disfarçadamente ou não os grandes irônicos são sempre grandes ristes, uma coisa é causa e efeito da outra. Parece-me que Marcus de Lontra Costa, em texto que se segue a este, é o primeiro a chamar a atenção para certa melancolia na arte de Poteiro, na qual, distraídos pelo colorido esfuziante, isso quase nos passa despercebido. Impressionaram-me muito a abordagem e o tom dos textos a seguir – o outro é uma joia de pequeno ensaio, no qual Denise Mattar demonstra uma tese sobre Poteiro ao lado de Nelson Leirner, seu antípoda total, luminar da vanguarda brasileira. Impressionaram-me particularmente a sobriedade e clareza do discurso, sem circunstancializações, sem mais ou menos, nenhum talvez. A perspectiva é a de quem se encontra com um artista maior, cuja importância é ponto pacífico, e a partir desse plateau compete estudá-lo.
Poteiro sempre foi um artista de extrema originalidade. Suas longas barbas brancas de profeta ambulante, a absoluta informalidade (quase descaso) no vestir-se, seu bom humor, a despretensão, a gentileza de trato, muitos traços dessa natureza poderiam fazê-lo parecer um personagem folclórico. Mas seria uma visão completamente equivocada. Nos anos 1970, num filme sobre ele colocaram Poteiro em cena, dentro de uma banheira espadanando água para todo lado. Estes, sim. Foram ingênuos, nada entenderam. Ele era sério e sábio. Criou tanto seus meios, sua linguagem plástica e a técnica com que veiculá-la, quanto o vasto universo temático a que deu vazão. Tudo o que viu e conheceu lhe despertou o interesse, quiçá a paixão, e construiu uma crônica ampla da vida, na qual se fundem astúcia e afeto. Seu repertório vai das belíssimas revoadas de pássaros e cardumes de peixes até aos mistérios da fé, a alguns desvãos da alma humana e à luta do bem contra o mal em diversas esferas. Ao contrário dos naïfs europeus – que realizam uma pintura estandartizada, riachos nacarados, campos e montanhas em dégradés, nuvenzinhas de algodão e figurinhas festivas –, Poteiro não faz a menor concessão ao bonitinho e/ou ao enfeite. Deixava correr sobre a tela a mão rude de oleiro, com tintas camada sobre camada, sem desenho prévio. O dramatismo (bem menor que o de José Antônio da Silva, por exemplo) não está na matéria ou na inexistente gestualidade. Manifesta-se pela complexidade (quase diria eu virtuosismo) de certas composições, antes que pelas expressões faciais. Os rostos são muito simplificados, esquemáticos e parecidos uns com os outros – com o que tem aver a tese de Denise Mattar. Basta olhar as figuras de Cristo nos quadros da crucificação.
Poteiro foi vivo e forte o bastante para resistir a pressões exteriores. Não sei se pintou por demanda do mercado ou qualquer outra, mas em toda circunstância preservou seu controle de qualidade. A produção é surpreendentemente homogênea. É também inconfundível. Sem fumos teóricos, fundando-se apenas em sua intuição, forjou um estilo só dele, reconhecível à primeira vista e de certa maneira contagiante. Inteiro, cumpriu com garbo o destino no qual o precipitou Siron Franco, trabalhando intensamente para o nosso prazer – e o dele próprio.
Olívio Tavares de Araújo
Serious and Sage
1,13 works for each year of the artist’s life. For a long time now, I’ve noticed the admiration and affection of the Flynn brothers – not only as art dealers, but as individuals of genuine sensibility – for the art of Antônio Poteiro, whose centenary this exhibition celebrates. With the same affection, they have gathered paintings and ceramics, saving them for today’s event. I believe that a collection of comparable scope and brilliance can only be found in the city of Goiânia, within the holdings of the family and the Antônio Poteiro Institute. It is also worth highlighting that the exhibition gives due importance to his ceramic work – those great clay pots that were once his trade and gave him his artistic name. From utilitarian objects, the pots rose to aesthetic status through their profuse ornamentation and weight, which stripped them of their practical purpose and transformed them into sculpture. They now serve only to be contemplated.
For this kind of artist – one who suddenly emerges from the corners where he had hidden, who received no formal training, learned neither to draw nor to paint, and only later earned the right to violate the reigning canons, who did not advance along the marked path of High Culture – the labels primitive and naïve are commonly applied. Neither term pleases me. Both may suggest ideas of primitivism, rudimentary skill, or intellectual deficiency. Yet it takes only a glance at the cleverness of Poteiro’s painting – and of Poteiro himself, in both senses of the word expertise – to recognize his expressive sufficiency and precision. There was nothing naïve about him. The more fitting description would be spontaneous and/or popular – titles which, among the civilized, diminish no one. Poteiro was anything but primitive.
As a painter, Poteiro was discovered, one might even say made possible, by Siron Franco in the early 1970s, a decade of extraordinary vitality in Brazilian art. Observing the formal richness of his pots’ ornamentation, their vivid storytelling and fervent inventiveness, Siron had the idea of putting paints, canvas, and brushes in his hands – and letting God decide the rest. God decided well. The strength of the emerging painter brought him immediate success with both public and critics, and by 1978 he was exhibiting at Galeria Bonino in Rio de Janeiro, a certain mark of recognition and quality. From then on, he showed his work in Brazil and abroad, in every international group exhibition
of contemporary Brazilian art and in numerous solo shows. I once met him in Japan, accompanying one of these, perfectly at ease without speaking a word of any foreign language, and, “Managing quite well, thank you”. With even greater ease (if possible), he faced and mastered the challenges of creation.
I cannot say I lived closely with Poteiro; we met a few times here and in Goiânia. Yet he was such a crystalline being that I came to understand his inner workings. A native of Madeira Island, Portugal, after emigrating to Brazil and before settling on the central plateau, he lived for several years in the interior of Minas Gerais – that magnificent school of irony, skepticism, and, perhaps, sadness. DisGreat ironists are always great melancholics; one condition is both cause and effect of the other. It seems to me that Marcus de Lontra Costa, in the essay following this one, is the first to draw attention to a certain melancholy in Poteiro’s art, something we almost overlook, distracted by its
dazzling color. I was deeply impressed by both the insight and the tone of the texts that follow – the other being a small gem of an essay, in which Denise Mattar presents a thesis on Poteiro alongside Nelson Leirner, his complete antithesis and a luminary of the Brazilian avant-garde. I was struck in particular by the sobriety and clarity of their discourse – no circumlocution, no hedging, no “perhaps.” The perspective is that of one who meets a major artist, whose significance is beyond question, and from that plateau proceeds to study him.
Poteiro was always an artist of rare originality. His long white beard, that of a wandering prophet; his absolute informality (almost neglect) in dress; his humor, modesty, and gentleness of manner – all of these traits could have made him seem a folkloric figure. That would be a complete misunderstanding. In the 1970s, a film about him showed Poteiro in a bathtub, splashing water everywhere. Those, indeed, were the naïve ones – they understood nothing. He was serious, and he was wise. He invented both his means- his visual language and the technique to convey it – and the vast thematic universe to which he gave form. Everything he saw and knew stirred his interest, even his
passion, and he built an expansive chronicle of life, fusing shrewdness with affection. His repertoire ranges from the beautiful flocks of birds and schools of fish to the mysteries of faith, the recesses of the human soul, and the struggle between good and evil across many planes. Unlike the European naïfs – who paint standardized scenes of pearly streams, gradient hills and fields, cottony clouds, and cheerful little figures – Poteiro made no concession to prettiness or ornament. The rough hand of the potter moved freely across the canvas, spreading
paint layer upon layer, without preliminary drawing. The drama (far less than in José Antônio da Silva, for instance) lies not in the material or in any gestural energy. It manifests through the complexity, one might even say the virtuosity, of certain compositions, rather than through facial expression. His faces are simplified, schematic, and similar to one another. One need only look at the figure of Christ in his crucifixion scenes.
Poteiro was strong and clear-headed enough to resist external pressures. I do not know whether he ever painted on commission or for the market, but in every circumstance he preserved his own standard of quality. His output is remarkably consistent, as well as unmistakable. Without theoretical pretension, guided solely by intuition, he forged a style entirely his own, recognizable at first glance and, in some sense, contagious. Whole and unyielding, he fulfilled with grace the destiny into which Siron Franco had thrust him – working tirelessly for our delight, and his own.
Olívio Tavares de Araújo
A repetição como poética visual
Poteiro e Leirner: entre a celebração e a crítica
A produção artística brasileira do século XX e início do XXI revela uma rica diversidade de linguagens e de posturas estéticas. Algumas delas, embora situadas em campos distintos de expressão e intencionalidade, por vezes convergem em procedimentos formais semelhantes. É o caso de Antônio Poteiro (1925–2010) e Nelson Leirner (1932–2020). Distantes em origem e propósito, com filiações estilísticas e ideológicas profundamente distintas – entre a fé e a ironia – eles se encontram, de maneira inesperada, partilhando uma mesma poética visual: o uso da repetição como estrutura de sentido e intensificação do olhar. Certamente o recurso compositivo e simbólico, desempenha papéis
diversos em suas respectivas obras, numa como intensificação do signo cultural, e noutra como esvaziamento crítico do símbolo institucionalizado.
A repetição em Poteiro não implica automatismo ou uniformidade, mas uma espécie de variação dentro da constância, evocando a noção de ritual visual. Como observa Georges Didi-Huberman (2001), o repetido na arte popular “não é o mesmo que o repetitivo”, pois carrega a memória viva da diferença e da singularidade. As figuras, ainda que semelhantes, nunca são idênticas: há sempre pequenas modulações que instauram um dinamismo interno à composição. A repetição aqui opera como estratégia de narrativa e de encantamento, reforçando a ideia de um mundo orgânico, cíclico e coletivo, em consonância com a tradição da arte popular e da religiosidade brasileira.
Em Poteiro, a repetição é mantra, oração popular. Suas figuras multiplicam-se como rezas murmuradas em coro, como fiéis numa procissão sem fim. Tudo remete ao ciclo da natureza e ao tempo ritualístico — o tempo da terra, da festa, do sagrado. Os personagens se espraiam pelo plano pictórico em filas, círculos, mandalas orgânicas — cada um com um traço ligeiramente distinto, mas compondo um todo que é celebração da coletividade. Como a reza de uma ladainha a repetição visual é uma ritualização, criando um excesso que gera vertigem, como se entrássemos num mundo onde a natureza, os santos e o povo se renovam, se multiplicam, se reiteram na fé e na festa.
Poteiro usa a cor como modela o barro: com as mãos da devoção. O espaço de suas telas é densamente preenchido por figuras que compartilham um mesmo gesto, um mesmo movimento, criando uma estética do múltiplo festivo, onde a repetição se torna forma de permanência. O excesso visual não é ruído: é celebração — e nele se reconhece um mundo onde a beleza está na insistência do cotidiano e no milagre do comum.
Inserido no campo da arte conceitual e relacional, a obra de Leirner se estrutura a partir de operações de apropriação, serialização e deslocamento semântico. Segundo Hal Foster (2004), o uso da repetição e da citação na arte pós-moderna implica uma desestabilização do autor e da obra original, abrindo espaço para o jogo irônico com os signos da cultura. Ao repetir imagens sacras, ícones da cultura pop ou objetos triviais em larga escala — muitas vezes em montagens irônicas ou absurdas, Leirner evidencia os processos de fetichização e banalização que atravessam o mercado de arte, a religião e a sociedade de consumo.
Leiner repete não para afirmar, mas para questionar. Sua multiplicação é uma estratégia de desconstrução do símbolo, produzindo estranhamento e crítica. Ícones religiosos, figuras do consumo, heróis do pop — tudo se clona, se reitera, até perder o sentido original. A multiplicação aqui é sátira e espelho, revelando o esvaziamento dos ídolos contemporâneos. Ao colocar dezenas de Cristos lado a lado, ou ao transformar o kitsch em instalação monumental, Leirner nos obriga a encarar o excesso como sintoma: o que resta do sagrado quando ele se repete ao infinito? O que sobra da arte quando tudo pode ser obra?
Entretanto, apesar das diferenças ambos criam uma experiência visual maximizada. Seus quadros e objetos não convidam a uma contemplação isolada, mas a uma imersão — como se o espectador fosse tragado para dentro de um espaço onde a repetição se torna paisagem. Em Poteiro, essa paisagem é festiva, lírica e telúrica. Em Leirner, é crítica, urbana e estridente.
Há algo de barroco nessa escolha comum: o horror ao vazio, o impulso de ocupar o plano com sentido, com presença, com vibração. Mesmo que um o faça pelo amor ao imaginário popular, e o outro pelo desejo de desmascarar os simulacros da cultura, ambos reconhecem na repetição um poder de encantamento ou estranhamento. Assim, é possível pensar a repetição como um operador formal transversal, que permite tensionar limites, e, dentro desse entendimento, a convergência entre Poteiro e Leirner, não reside em suas intenções ou valores, mas na maneira como exploram a potência do múltiplo para instaurar universos estéticos densos, complexos e, sobretudo, instigantes.
Talvez possamos dizer que Poteiro repete para celebrar e Leirner para desconstruir, mas ambos entendem que o mundo — este mundo brasileiro tão saturado de crenças, consumo, cor e caos — só pode ser tocado na sua profundeza se nos entregarmos à intensidade do múltiplo. E entre o encanto de Poteiro e o sarcasmo de Leirner, entre o sagrado e o profano, entre a ingenuidade e a crítica, encontramos um mesmo gesto: a repetição como poética visual, como pulsação estética do Brasil.
Repetition as Visual Poetics
Poteiro and Leirner: Between Celebration and Critique
Brazilian artistic production of the twentieth and early twenty-first centuries reveals a rich diversity of languages and aesthetic stances. Some of these, though located in distinct fields of expression and intent, at times converge in similar formal procedures. Such is the case of Antônio Poteiro (1925-2010) and Nelson Leirner (1932-2020). Distant in origin and purpose, with profoundly different stylistic and ideological affiliations – between faith and irony – they unexpectedly meet, sharing a common visual poetics: the use of repetition as a structure of meaning and an intensifier of vision. Certainly, this compositional and symbolic device plays divergent roles in their respective works – in
one, as an intensification of cultural signification; in the other, as a critical emptying of institutionalized symbols.
Repetition in Poteiro does not imply automatism or uniformity, but rather a kind of variation within constancy, evoking the notion of a visual ritual. As Georges Didi-Huberman (2001) observes, what is repeated in popular art “is not the same as the repetitive,” for it carries the living memory of difference and singularity. The figures, though similar, are never identical: there are always small modulations that create an inner dynamism within the composition. Repetition here functions as a strategy of narrative and enchantment, reinforcing the idea of an organic, cyclical, and collective world – in tune with the traditions of Brazilian popular art and religiosity.
In Poteiro, repetition is mantra – a popular prayer. His figures multiply like murmured litanies, like the faithful in an endless procession. Everything refers to the cycle of nature and to ritual time – the time of the earth, of festivity, of the sacred. The characters spread across the pictorial plane in rows, circles, organic mandalas – each one with a slightly distinct trace, yet composing a whole that celebrates collectivity. Like the recitation of a litany, visual repetition becomes ritualization, creating an excess that induces vertigo, as though we entered a world where nature, saints, and people continually renew, multiply, and reiterate themselves in faith and festivity.
Poteiro handles color as he molds clay – with the hands of devotion. The space of his canvases is densely filled with figures that share a common gesture, a common movement, creating an aesthetics of the festive multiple, in which repetition becomes a form of permanence. The visual excess is not noise: it is celebration – and within it, one recognizes a world where beauty lies in the insistence of the everyday and in the miracle of the ordinary.
Situated within the field of conceptual and relational art, Leirner’s work is structured through operations of appropriation, serialization, and semantic displacement. According to Hal Foster (2004), the use of repetition and citation in postmodern art entails a destabilization of both author and original work, opening space for an ironic play with the signs of culture. By repeating sacred images, pop icons, or trivial objects on a large scale – often through ironic or absurd assemblages – Leirner exposes the processes of fetishization and trivialization that permeate the art market, religion, and the consumer society.
Leirner repeats not to affirm, but to question. His multiplication is a strategy of symbolic deconstruction, producing estrangement and critique. Religious icons, consumer figures, pop heroes – all are cloned, reiterated, until they lose their original meaning. Multiplication here becomes satire and mirror, revealing the emptiness of contemporary idols. By placing dozens of Christs side by side, or by transforming kitsch into monumental installation, Leirner compels us to confront excess as symptom: what remains of the sacred when it repeats to infinity? What remains of art when everything can be art?
Yet despite their differences, both artists create a heightened visual experience. Their paintings and objects do not invite isolated contemplation but immersion – as if the viewer were drawn into a space where repetition itself becomes landscape. In Poteiro, that landscape is festive, lyrical, and earthly; in Leirner, it is critical, urban, and strident.
There is something baroque in this shared choice: the horror of emptiness, the impulse to fill the surface with meaning, with presence, with vibration. Even if one does so out of love for the popular imagination and the other from a desire to unmask the simulacra of culture, both recognize in repetition a power of enchantment or estrangement. Thus, repetition may be seen as a transversal formal operator – one that allows the stretching of boundaries – and, in this sense, the convergence between Poteiro and Leirner does not lie in their intentions
or values, but in the way they explore the potency of the multiple to construct dense, complex, and, above all, compelling aesthetic universes.
Perhaps we could say that Poteiro repeats to celebrate, and Leirner to deconstruct; yet both understand that the world – this Brazilian world, so saturated with belief, consumption, color, and chaos – can only be touched in its depth if we surrender to the intensity of the multiple. And between Poteiro’s enchantment and Leirner’s sarcasm, between the sacred and the profane, between naïveté and critique, we find the same gesture: repetition as visual poetics, as the aesthetic pulse of Brazil.
A pintura e as armadilhas do olhar
Em meio ao burburinho e à velocidade do mundo contemporâneo, a pintura de Eduardo Sued se sobressai por sua fisicalidade e seus largos e generosos campos de cor. Tudo aqui conspira a favor da história; o artista é o elo de uma corrente, segue os caminhos e a sua sina é reescrever fábulas e mistérios da existência e da consciência humana. Ele é personagem atemporal em sua permanência no silencioso embate da pintura com o mundo.
Em sua longa trajetória profissional Eduardo Sued sempre identificou na história a sua companheira de trabalho. O artista referencia-se diretamente às estratégias articuladas inicialmente por Edouard Manet e principalmente à escala de graus e valores cezanianos que estruturam o espaço moderno bidimensional. A partir dessa definição seminal de ação artística, Sued atua na incorporação de referências e vetores distintos para criar uma obra que dialoga sobre o papel da arte nesses tempos supostamente líquidos onde vivemos e afirma fisicalidades em meio às dominações virtuais determinadas pela cibernética.
Os espaços vibrantes determinam a ação substantiva da cor onde cada uma, individualmente, provoca e sugere descobertas; o contraste entre elas atua na interseção de conjuntos criando equações de extrema potência visual e inteligência plástica. Por isso, a superfície pictórica em Sued é repouso e inquietude, afirmação e provocação. Com maestria o artista conduz o olhar e direciona a cena para as margens, deslocando o tradicional local da ação pictórica e colaborando para a criação de verdadeiras “arapucas” abstracionistas.
Seus quadros remetem a inúmeros momentos e verdades da chamada arte moderna, conectando, por exemplo, o colorismo esperançoso de Matisse às construções assimetricamente precisas de Mondrian. Há também nessas pinturas uma espécie de referência melancólica ao “fantasma” da pintura. Aquele que não é visto, que se origina do reflexo do outro e se estrutura no imponente mistério das paisagens silenciosas e das naturezas mortas morandianas que Sued recria e transforma. Em meio a essas referências o artista afirma a história como ferramenta dialética de ação e transformação, e “à la Manet” delas se apropria, utilizando-as como trampolim para uma obra comprometida com seu tempo e voltada para o futuro. Suas pinturas, afirmativas da modernidade, são também, dispositivos visuais que se contaminam por formas, contrastes, texturas, ironias e assumidas contradições trazidas não somente da arte europeia, mas também de sutis elementos oriundos do universo Kitsch e pop/popular nacional.
Na confluência dessas ações a placidez pictórica de Eduardo Sued atua como armadilha de uma obra jovem e inquieta. Às vésperas de comemorarmos o centenário desse artista referencial da arte brasileira, a reunião desse pequeno e valioso conjunto de pinturas acentua a atemporalidade da atividade artística valorizando o talento e a inteligência como pilares essenciais da beleza e da verdade.
Marcus de Lontra Costa
Pelas Dobras do Tempo
Durante um longo tempo o processo colonizador reduziu o conceito artístico às especificidades da arte europeia, fazendo com que a sociedade burguesa fosse a exclusiva detentora de ações criativas que originaram o sistema da arte, composto por museus, galerias, mecenas, colecionadores, críticos e curadores e, ao fim, artistas. Ao desprezar o fenômeno artístico como ação seminal da espécie humana, privilegiando a “intencionalidade”, estranha e autoritária definição que determina o rótulo artístico somente aos artefatos e ações que foram propositalmente nominados pelos agentes e produtores culturais, o “sistema” criou uma quase infinita adjetivação que tinha por objetivo definir
e reduzir a arte produzida por vastas parcelas da população, excluídos, marginais, pobres, subdesenvolvidos, mulheres, enfim todos aqueles que não integravam o Olimpo da arte europeia, branca, colonizadora, masculina e heterossexual.
A arte como sabemos é essência da atividade humana; ela gera cultura e saber, valoriza e identifica os comportamentos gregários. Ela é uma instância do Ser que dialoga com a tecnologia de sua época e com várias ciências e saberes como a geografia, a história, a filosofia, a antropologia e mais recentemente a psicanálise e a ecologia. A arte é fator de identificação e aproximação dos seres.
Diante de cada escultura ou pintura do mestre Antonio Poteiro todas as teorias reducionistas se esvaem. Tudo aqui é movimento, corpo, mãos que constroem potes, vasos, urnas, espaços da memória, guardados, relíquias escondidas, seres fantásticos, formas e vozes assombradas, ninhos de sonho, lembranças de um mundo distante que a arte transforma em presente. A arte de Antônio Poteiro é, ao mesmo tempo, sudário e espelho. Há nelas impresso o drama e a solidão humana, o olhar do homem para o céu, infinito, repleto de perguntas sem respostas. Aqui o tempo é composto por dobras que transformam seres do passado num retrato de nós mesmos. Por isso, mesmo para aqueles que descobrem a arte de Poteiro, a primeira sensação é de pertencimento, encanto e identificação.
A cerâmica de Poteiro nasce de um impulso criativo vital. A terra e a água são moldadas pelas mãos do artista que faz brotar formas e volumes que se inserem na paisagem. Nessa planície, nesse cenário, essas cerâmicas estão prenhes de vida como se fossem populosos cupinzeiros humanos, olhos e bocas que surgem da terra levantada a cantar histórias e fábulas formando um coro bíblico, ópera da comédia humana. Artista comprometido com a arte de matriz popular, Poteiro recupera o caráter fenomenológico como ferramenta de absorção da arte. Atuando diretamente na memória das pessoas, revelando arquétipos e criando referências coletivas nas quais a cultura se apropria para criar experimentos que identificam seu povo. Esse é o caso da arte de Poteiro, patrimônio maior do Brasil.
Essas figuras tementes que povoam as cerâmicas de Poteiro assumem uma maior organização e simetria quando se deslocam para o campo da bidimensionalidade. A apropriação cromática, intensa e contrastante, e a figuração sintética que ocupa todo o espaço da tela dialogam com várias fontes culturais estabelecendo curiosas relações com artistas de tempos e geografias distantes. O lendário ibérico conecta-se com Brennand e o Movimento Armorial Pernambucano; se Gauguin atravessou o mundo em busca da pureza artística, Poteiro encontrou no cerrado, na terra goiana, o seu paraíso e a sua referência, retratando a sua religiosidade e suas festas populares. A estruturação espacial de suas pinturas o aproxima de Volpi e Djanira e o encantamento pela beleza da cultura popular o aproxima de Di Cavalcanti. No diálogo com artistas da mesma matriz popular as paisagens de Poteiro dialogam com a pintura de José Antonio da Silva e as esculturas de Arthur Pereira e GTO. A arte de Poteiro é um farol que abraça o Brasil.
Nessa sociedade distópica que vivemos a velocidade das inovações tecnológicas parece conduzir o ser humano para um turbilhão de experimentações e sensações estéreis e vazias de significado. Ao ressignificar a história e criar pontes entre o passado e o presente, a obra de Poteiro se afirma como poderosa ferramenta para enfrentar as incongruências do mundo atual e criar poéticas visuais necessárias para um futuro no qual a arte a religião e a ciência caminhem unidas para proporcionar à humanidade a sua dimensão maior.
Marcus de Lontra Costa
Obras Em Exposição
Dream 3 “I wanted to be a singer, poet, or pilot. I was none of that. I became a poteiro (potter) and even kept the name.”
170 x 122 cm - Oil on Wood - Signed Lower Right and on Back, Dated 1976
45 x 50 cm - Oil on Canvas - Signed Lower Right and Dated 1989
The Last Supper at Fogaréu
180 x 170 cm - Oil on Canvas - Signed Lower Right and Dated 1995