Exposição Coletiva
Eymard Brandão
Jayme Reis
Jorge dos Anjos
Paulo Laender
Roberto Vieira

Abertura
20 de junho de 2013
Das 20 às 22 horas
Exposição
De 21 de junho a 20 de julho
De segundas a sextas Das 9 às 19 horas
Sábados, das 9 às 13 horas
Local
Rua Curitiba, 1862, Lourdes, 30170-127
Belo Horizonte/MG
Estacionamento Privativo
+55 (31) 3318-3830
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Pela via de Minas
Conheço de longa data os participantes da presente exposição. Vindo de Juiz de Fora, na década de 1960 Roberto Vieira lá integrava a turma catalisada por Nívea e Carlos Bracher, amigos meus da primeira hora, e em Belo Horizonte foi meu vizinho de casa ao lado, quando tínhamos menos de 20 anos. Ao passar me ouvia estudar piano e, filho de músico, estudante de violino ele próprio, ficava ligado, talvez imaginando o duo que, afinal, nunca formamos – hélàs! Na mesma época surgiu Paulo Laender, meu aluno na antiga Escolinha Guignard do Parque Municipal (fui um professor precoce), e que estava na primeira exposição sobre a qual escrevi um texto em catálogo. Eymard Brandão fez parte do grupo que se destacou nas décadas de 1970 e 80, quando houve um surto de desenho mineiro nacionalmente reconhecido por sua qualidade, que todos acompanhamos através de inúmeros prêmios em salões. Só com Jorge dos Anjos não posso dizer que tive convivência, mas seu trabalho se me impôs provavelmente a partir dos Festivais de Inverno e eventos semelhantes; não me lembro, realmente, de quando nos encontramos em pessoa. Enfim, Jayme Reis é o amigo mais recente, de quinze anos para cá. Como é o caçula desta mostra, também o encontrei ainda como um jovem.
O lado engraçado disso tudo é que, quando Errol Flynn Júnior me falou da presente exposição, por ele concebida, minha primeira, espontânea reação foi inevitavelmente pensar na juventude dos integrantes, e em como era bom para a galeria se associar assim a novos! Logo depois, claro, percebi o absurdo – como se o tempo não tivesse passado e não se tratasse, já, de artistas consagrados, com idade média acima dos 60 anos. Ao lado de alguns mais velhos, ex-alunos de Guignard, que continuam (num belo exemplo) trabalhando¹, e de outros de sua própria faixa etária, constituem a geração da plena maturidade, hoje, em Minas. Minha longa relação com eles e suas obras traz também uma consequência muito positiva. Falarei, aqui, com conhecimento de causa, a partir de trajetórias cujo crescimento acompanhei, e com simpatia e amizade – o que não é menos importante, desde que não prejudique a capacidade de ver com objetividade.
1 – No segundo semestre deste ano, a Errol Flynn Galeria de Arte vai realizar uma exposição de ex-alunos de Guignard. Dos vivos e atuantes, como Maria Helena Andrés, Sara Ávila, Yara Tupynambá, aos falecidos, como Amílcar de Castro, Farnese de Andrade, Chanina e outros. Da morte de Chanina só fiquei sabendo agora, com tristeza, ao escrever este texto. A sorte não o bafejou em vida, negando lhe o prestígio que sua pintura merece. Talvez agora se inicie a revisão.
Há artistas tranqüilos, equilibrados, apolíneos, como Morandi, Mondrian, Volpi, Ianelli, cuja evolução se processa por etapas contínuas, cada fase saindo orgânica, fluentemente da anterior; e há artistas mais dionisíacos, como Picasso, Siron Franco, Antônio Henrique Amaral, que procedem por sobressaltos e conflitos, por fases que se negam umas às outras. A despeito da nossa cota de barroco, creio que entre os mineiros predomina a alma apolínea, a necessidade de controle, a busca de uma ordem soberana, como a que (sempre lindamente) invoca quem mais entende do assunto:
Espírito de Minas, me visita,
e sobre a confusão desta cidade,
onde voz e buzina se confundem,
lança teu claro raio ordenador².
Entre nós, aos conflitos e às angústias acabam por superpor se – sem eliminá-los – certo esprit de clarté, a necessidade de compreender inteligivelmente o mundo, dominando-se e dominando a própria expressão. Desvãos escuros não são a nossa praia. Observem que, com a marcante exceção de Carlos Bracher, não existe nem existiu, de fato, na pintura mineira, um expressionista arraigado; em alguns momentos, Inimá apenas passou perto. E embora nascido em Minas, Farnese de Andrade (este, sim, um visceral) realizou sua obra no Rio.
Verifica-se, assim, que todos os artistas desta exposição desenvolveram uma produção coerente. O que fazem hoje já estava no trabalho de ontem. A coerência mais evidente vem a ser a de Jorge dos Anjos, cujo projeto, intelectualmente concebido, permuta inesgotavelmente signos associados à visualidade das culturas negras, alguns preexistentes, outros imaginados. Não se trata de falta de imaginação nem comodismo, e sim de fidelidade a um escopo delimitado, semelhante, por exemplo, ao de Rubem Valentim. O mestre baiano se propunha estabelecer o que ele mesmo denominava uma “riscadura brasileira”, a partir das formas e ornamentos dos peijis, os altares do candomblé. A grande diferença reside em que a obra de Valentim é gárrula, movimentada, colorida, diretamente vinculada a sua experiência pessoal religiosa, ao passo que a de Jorge é mais cerebral. Não há como não perceber que a busca de origens se dá, em Valentim, pela via baiana, ao passo que a de Jorge se dá pela via de Minas.
2 – Carlos Drummond de Andrade, “Prece de Mineiro no Rio”, Poesia Completa e Prosa, Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1973, p. 304.
Assim como pela via de Minas transitam, igualmente, os demais. Balizados, todos, pelo raio ordenador, apresentam nos propostas em que a beleza do equilíbrio e harmonia, a beleza de natureza clássica elimina qualquer vestígio da beleza terrível – a que se impregna, justamente, num Farnese. Para assegurá-lo basta-nos observar a diferença entre a delicada sedução dos objetos realizados por Paulo Laender, cálidos, líricos e límpidos, e os do próprio Farnese, imersos na tragédia da contingência humana. Laender é, dos aqui presentes, o mais marcado pelo passado barroco – bem como, algo surpreendentemente, por um nítido perfume art-deco. Não obstante, seu trabalho sempre lhe traduziu a personalidade tranquila – tanto quanto um artista pode ser tranqüilo e tanto quanto nos é dado perceber –, e revelou o senhor absoluto de seus meios expressivos, da técnica impecável, o criador de formas decididamente elegantes³. Conchas e outros achados marinhos, também fartamente utilizados por Farnese, e que neste servem à discussão de questões ontológicas, de origem e destino, nascimento e morte, servem-lhe para a criação de volutas, rocailles e requintadas texturas. A destacar ainda, em sua produção de hoje e de sempre, o capricho, não só no sentido corrente de esmero, como também no de capriccio, o prazer lúdico,
3 – O assunto vale esta longa nota. Há quem tenha reservas quanto ao termo elegância aplicado à grande arte. De minha parte, ressalto que a considero uma evidente qualidade. Não se confunde com facilidade, afetação ou compromisso. Constitui uma especial combinação de precisão, ritmo e brilho que rejeita o exibicionismo, o virtuosismo puro. Envolve certa gentileza para com o espectador, o desejo de carinhosamente conquistá-lo mais que o de o arrebatar. Implica o mais total bem fazer. Botticelli, Bronzino e Bonnard; Corelli, Chopin e Ravel; Garcia Lorca, Ungaretti e Cecília Meirelles são elegantes – e são grandes. Vermeer, um dos maiores de todos os tempos, é profundamente elegante. Abrindo ao acaso a Obra Poética de Cecília Meirelles (Companhia José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1972, p. 183), sou recompensado com esta prova irrefutável:
Interlúdio
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente – claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales.
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
a liberdade inventiva, às vezes até esfuziante, que pervaga o barroco. E, enfim – elogio maior não se lhe poderia fazer –, a arte de Paulo Laender conquistou a inconfundibilidade. Diante de qualquer um de seus trabalhos, detectamos instantaneamente o autor.
Outro tipo de ludismo se encontra em Jayme Reis. Talvez por sua idade, suas obras são, nesta mostra, as menos complicadas, as menos envolvidas com qualquer questão para além de sua fruição imediata. Sua produção andou sempre à margem das tendências em moda, sem se preocupar em ser moderninha nem seguir figurinos de sucesso; não se quis de vanguarda e sim servir a jogos intimistas. Nos últimos anos, constitui-se sobretudo de box forms com assemblages, tanto utilizando readymades (martelos, barquinhos, violinhas de brinquedo compradas no mercado municipal) quanto imagens simples fabricadas por ele mesmo, em massa plástica, madeirinha de balsa, ferro e outros pedaços de metal. Com sua peculiar e engenhosa reinvenção da paisagem – esses encantadores recortes de igrejas fabricados com a fragilidade de arapucas, as formas de barcos que se articulam nas fachadas, a falsa precariedade, o rastro do instante – Jayme Reis também está delineando (até precocemente) um universo próprio, que tampouco se parece com o de nenhum outro artista mineiro 4.
Falar em reinvenção da paisagem nos remete, enfim, a Eymard Brandão e Roberto Vieira – os dois paisagistas da mostra. Evidentemente não se trata de paisagistas em sentido estrito, mesmo se, de fato, antes de chegarem à abstração, passaram ambos pela figuração e pintaram paisagens – o primeiro sistemática, o segundo, episodicamente. Trata-se de alegorias, metáforas de Minas. Ocorre que, em graus diferentes de consciência e com maior ou menor intensidade (conforme o momento), a busca de uma identidade nacional e/ou regional como caminho para a universalidade é um procedimento recorrente na história da arte. “Para ser universal, comece por falar de sua aldeia”, ensinava Tolstoi. Algo assim aconteceu na arte mineira na década de 1970. Por vários motivos, inclusive políticos – a necessidade de auto-afirmação perante um regime de força –, surgiu aqui uma espécie de movimento “montanhista”, elegendo-se o contorno sinuoso delas como símbolo local e de resistência. A artista Madu Vivacqua descobria e revelava até que “Minas é uma palavra montanhosa” (ao que Drummond redarguiu, inflexível: “Minas é palavra abissal”). Na mesma época, ao lado do montanhismo porém na outra ponta, Amílcar de Castro voltava para residir em Belo Horizonte e trazia-nos a lição de sua escultura construtivista rigorosa, de seu despojamento e severidade inclusive pessoais, e a possibilidade de leitura metafórica de sua matéria-prima sóbria e pesada. (De novo Drummond: “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas”) 5. Enfim, com suas econômicas pinturas abstratas sobre tapumes e outros restos de madeira, Celso Renato evidentemente ultrapassava o plano temático para instituir uma vertente regional da arte povera, uma das mais férteis tendências do último terço do século passado.
Foi nesse cadinho de forças seminais distintas mas, afinal, convergentes, que germinaram obras como as de Eymard e Roberto. Depois de ter utilizado, por décadas, chapas de metal manchadas, oxidadas, levemente perfuradas pelo tempo – mas não em completa decadência –, o primeiro há alguns anos ampliou seu repertório, acrescentando-lhe os mais distintos materiais de origem mineral e alguns refugos industriais deles resultantes. O material de Roberto Vieira é semelhante porém mais radical. Prepondera avassaladoramente a própria terra, que ele faz aderir e recobrir várias formas figurativas, no final integradas num resultado virtualmente abstrato. Pela geometria que lhes preside aos trabalhos, são ambos exemplos do que se costuma chamar de “vocação construtivista” da América Latina – assim como da mais autêntica “geometria sensível”, rótulo cunhado nos anos 1970 para designar uma simbiose avessa aos construtivismos matemáticos, ortodoxos, às vezes ranhetas. Típica geometria sensível foi, por exemplo, a dos neoconcretistas cariocas, tendo os geniais “bichos” de Lygia Clark como suas criaturas mais notáveis.
4 – Por certo, nem o universo nem a linguagem de Jayme Reis nascem subitamente do nada. Não seriam como são se não tivesse havido antes um Marcos Coelho Benjamim, grande inventor e, hoje, mestre de uma geração.
5 – Drummond, “Confidência do Itabirano”, op. cit., pg. 101.
Resulta que, em Eymard, o conhecimento do ofício, a experiência, a coerência, o gosto seguro estruturam as superfícies em sóbrias e bonitas construções, sem nenhuma contaminação da sujeira ou peso que os detritos possam ter carregado, na origem. Não existe, tampouco, nenhum pessimismo: são ‘paisagens’ solares. Com Roberto Vieira as coisas se passam de maneira diversa. Temperamento complexo, provavelmente o mais angustiado deste grupo, é um artista vespertino, quiçá noturno. A especificidade de sua densa poética reside em conseguir, até nessas obras que o espírito de ordem governa, certo clima de saudosismo, de retomada do passado perdido. Numa espécie de arqueologia fantástica, muita coisa parece ter sido desenterrada e estar voltando à vida. Ainda assim é arte forte, afirmativa, viril – não alquebrada. Nosso poeta maior escreveu um dia: “Minas não há mais”. As obras de Roberto Vieira replicam: “Minas sempre há – trata-se de achá-la em seus esconderijos recônditos”.
Olívio Tavares de Araújo